Este texto contém revelações (“spoilers”) sobre o enredo do filme “Não olhe para cima”.
O filme “Não olhe para cima'' é uma sátira política produzida por Adam Mckay que em outros tempos poderia ser encarado como uma comédia, mas que acaba clamando por críticas mais elaboradas devido aos tempos em que vivemos. Começamos o ano de 2022, o terceiro desde o início da pandemia, com um aumento expressivo nos casos de COVID e uma nova epidemia de gripe causada pelo vírus Influenza H3N2. É cada vez mais evidente a importância de uma comunicação científica clara e objetiva.
Vamos fazer uma pequena reflexão: Você sabe quem descobriu o SARS-CoV-2? Admito que precisei pesquisar para saber. A médica pneumologista Jixian Zhang fez o que a maioria dos cientistas faria com uma descoberta potencialmente perigosa: alertou seus pares para que outros profissionais da saúde pudessem checar os dados e se mobilizarem em grupo. Ela reportou o caso à diretoria do hospital que por sua vez acionou o centro de controle de doenças em Wuhan. Mesmo que as notícias vindas de Wuhan (China) fossem preocupantes, somente tivemos uma real noção do tamanho do problema com a declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde.
Assim funciona a Ciência, um esforço coletivo de uma grande comunidade de profissionais, não existem heróis. E por isto considero estranho que o roteiro do filme “Não olhe para cima” seja tão centrado em apenas três cientistas. Na trama, a doutoranda e astrônoma Kate Dibiasky (J. Lawrence) descobre um asteroide e junto ao seu orientador, o Dr. Randall Mindy (L. DiCaprio), concluem que este está em rota de colisão com a Terra e tem potencial para extinguir a humanidade.
Ainda que eles alertem a NASA, apenas uma pessoa os auxilia, o Dr. Teddy Oglethorpe (R. Morgan). Onde estão os demais cientistas e organizações científicas? Mesmo que os protagonistas não tenham divulgado amplamente os dados observados por Dibiasky no telescópio Subaru, outros astrônomos certamente fariam a mesma descoberta. Por que a comunidade internacional mal é citada? Uma declaração da União Astronômica Internacional receberia uma confiança muito maior do que declarações de um pequeno conjunto de cientistas.
A ideia de um herói talvez seja interessante para a história, mas no mundo real não é assim. Vamos esperar sentados até que alguém nos salve? E se o mocinho falhar? E se a heroína não for ouvida e tratada como louca? Estamos falando de problemas reais! Mudanças climáticas, pandemias, pobreza extrema e outros são problemas que não se resolverão sozinhos.
O enredo do filme acaba com o asteroide destruindo tudo e provavelmente algumas pessoas tenham sentido uma certa satisfação com este fim, pois ele praticamente grita “isso é o que acontece quando vocês não ouvem a ciência”. Mas qual o objetivo da comunidade científica? Poder dizer “eu avisei” quando um destino terrível for inevitável ou provocar mudanças verdadeiras na sociedade que evitem tal destino?
Vivemos em um momento em que é difícil convencer pessoas a usarem máscaras em uma pandemia causada por um vírus mortal de transmissão aérea. Talvez não seja a melhor ideia aparecer na televisão afirmando que todos vão morrer. E eu digo talvez pois não sou um especialista em comunicação; Um problema coletivo de proporções globais exige esforço coletivo, não somente de cientistas que possuem a bagagem técnica para detectar as crises e propor soluções, mas também por pessoas que saibam informar e mobilizar a população, de administradores públicos que possam criar políticas de contenção de crises e por toda a sociedade que precisa fazer um esforço ativo para mudar seus hábitos.
Penso que a divulgação científica terá um grande papel nas próximas décadas, vivemos em uma sociedade tão tecnológica e dependente de ciências que para entender e participar do debate público é necessário possuir um mínimo de letramento científico. E apesar de considerar o trabalho feito por muitos colegas cientistas importante e necessário, considero que precisamos de profissionais especializados. Quando digo isto, me refiro tanto a formações específicas em comunicação científica, quanto a existência de cargos remunerados para esta profissão.
Outras opiniões sobre o filme:
[1] Don't look up - Bruno Diniz
[2] Existe uma leitura do filme 'Não Olhe Pra Cima' que me preocupa - Thiago Gonçalves (Tilt Uol)
Mariana Pezzo, Tárcio Fabrício e Adilson de Oliveira (Uol)
[4] 'Não Olhe Para Cima': cientistas brasileiros dizem o que é verdade e ficção - Roberta Duarte e Eduardo Sato (Texto e entrevista por Letícia Naísa - Tilt Uol)
[5] Look away: why star-studded comet satire Don’t Look Up is a disaster - Charles Bramesco (The Guardian)
[6] If we can’t beat the apocalypse, at least we can laugh at it - Alissa Wilkinson (vox)
Discussões interessantes no Twitter:
[7] Thread por Sabrina Fernandes @safbr (Tese Onze)
[8] Thread por Fernando @punkbiology
[9] Thread por Luíz Bento @luizbento
[10] Thread por Eduardo Sato @ea_sato
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